Raquel
Rennó
Imagem em formação
Os avanços tecnológicos têm possibilitado a evolução das mídias
em direção a uma maior “fidelidade” na captação do áudio e vídeo.
Equipamentos de segurança sofisticados permitem o monitoramento
de ambientes sem que se perceba sua presença. Por outro lado, gadgets
como palm tops, telefones celulares, mini câmeras (que funcionam
de modo cada vez mais integrado) são utilizados de forma intensa
nas grandes cidades, atualizando a idéia de meios como extensões
avançadas do homem.
A
câmera fotográfica digital permitiu que as fotos pudessem ser realizadas
repetidas vezes e que o resultado digitalizado pudesse ser imediatamente
modificado por meio de softwares específicos. Telefones celulares
com câmera modificam o uso da mídia e a função da fotografia no
dia-a-dia das pessoas. Potencialmente, qualquer evento cotidiano
“merece uma foto”.
A
digitalização das imagens e sua presença em aparelhos tecnológicos
cada vez mais entranhados no cotidiano, gera a fragmentação e difusão,
aumentando sua presença na vida de todos, gerando uma conseqüente
naturalização das imagens midiáticas.
Por
naturalização das imagens entendemos o processo cognitivo onde o
signo não é mais percebido em sua definição clássica, “aquilo que
está no lugar de algo” e passa a ser a coisa em si, o que Baudrillard
chamou de “efeito real”. É exatamente o que há de poderoso nas interfaces
gráficas que operam por meio de metáforas e ícones gráficos. A rapidez
com que comunicam sua mensagem tem a ver com a simplicidade da mensagem
e a força persuasiva que é própria das metáforas (haja visto a freqüência
com que ela é utilizada na retórica). Segundo McLuhan (1998:348),
a própria noção de “real” é própria do mundo visual. O autor chama
a atenção para o fato de que a palavra phony, que significa
falso ou irreal em inglês, significava originalmente “tão irreal
quanto uma conversa telefônica”.
Câmeras
de cinema, fotográficas, de vídeo e webcams são o canal de entrada
de informações que, por sua extrema referencialidade, criam objetos
que passam a ser confundidos com uma realidade falsa, que carece
da “verdadeira essência” do mundo real. A corrida em direção à maior
perfeição da captação da imagem real ou mesmo da criação de animações
digitais é um fato mercadológico que atua sobre os produtos da mídia
de modo geral. “The next big thing” tem a ver com a possibilidade
de maior fidelidade que um software ou um captador de imagem pode
trazer.
Este
contexto permite que o constructo midiático seja percebido
como um mundo paralelo ao “real”, muitas vezes fetichizado e compreendido
como parte de uma meta-realidade ao mesmo tempo sedutora e vigilante.
MacLuhan observou que os meios aparecem como próteses, extensões
do homem mas o surgimento de novos meios nos ambientes gera a “narcose
de Narciso”, uma incosciência geral dos seus efeitos psíquicos e
sociais. Eles se tornam invisíveis.
Por
outro lado, falar de ambiente controlado, “dominado pelas mídias”,
coloca as mídias como um conjunto onisciente e dominador, (cuja
tendência ao controle da humanidade já foi prevista no filme Exterminador
do Futuro, retratada em Blade Runner pelos replicantes mais
humanos que os humanos), onde o homem está fatalmente condenado
a sucumbir já que é quase impossível distinguir o “real” do “imaginário”.
Não
se pretende aqui ignorar o poder da comunicação midiática, mas sim
romper a idéia de que estas questões são inerentes aos suportes.
Na verdade as mídias possibilitam por um lado a integração e a fragmentação
das comunicações, mas o uso controlador ou subversivo que se faz
dela não pode ser visto como uma questão a priori.
Estas
abordagens excluem a discussão das mídias como construtores de novos
sentidos, que são estabelecidos por meio de contratos entre usuário
e criador que estão além do simples ilusionismo.
No
que se refere às imagens mídiáticas, elas são incorporadas e customizadas,
mas a natureza do suporte é absorvida sem maiores questionamentos.
Como muitos autores já ponderaram, é importante expor que aquela
imagem é de uma outra natureza, e mais que tudo: não tem necessariamente
uma relação umbilical com o real que capta, porque ainda que Peter
Lunenfeld tenha chamado a atenção para a mudança (ou reescritura)
que a imagem digital sofre a cada vez que é “comprimida e descomprimida”,
a própria noção de original e cópia não opera na mesma relação que
nas imagens geradas por procedimentos mecânicos.O processo de captação
também é um código, podendo ser alterado a qualquer momento. A imagem
tradicional e sua linearidade entram em crise.
Um
exemplo da inadequação das metáforas oferecidas em softwares como
o Office por exemplo, vem do fato de que inicialmente o uso dos
computadores estava diretamente ligado aos escritórios, mas atualmente
seu uso é muito mais amplo, está imbricado no cotidiano da maioria
das pessoas. As referências, no entanto, não se atualizaram e colocam
o computador ainda como um espelho da rotina de uma repartição pública.
Mesmo com as novas propostas de customização de alguns softwares,
há sempre a necessidade de se adaptar a uma estandartização do uso.
Um só discurso, um só modo de se ver o ambiente digital. E quais
são as conseqüências disso?
Recuperando
as conexões É
sabido (e amplamente utilizado pela publicidade) que quanto mais eficiente
a comunicação mais codificada ela é. A questão é que eficiência pode
ser um valor bastante parcial para avaliar uma troca de informações,
já que parte do ponto de vista do emissor e leva em conta um vetor
unilateral, que prioriza a recepção. A mensagem eficiente é a que
chega com menos “ruído” para o receptor. É
o paradoxo que se enfrenta na comunicação: sabe-se que pela teoria
da Cibernética, a entropia (ou ruído) é mais freqüente que a ordem;
a comunicação como troca de fluxos informacionais está sempre em
busca de uma codificação que permita o mínimo de dispersão da energia.
Por outro lado, deixar que a entropia seja incorporada de certa
forma ao processo comunicativo permite maior complexidade da informação.
E sabe-se que uma mensagem com um código extremamente fechado passa
a ter uma taxa informativa tão pequena que passa a não informar.
O que pode ocorrer com a reiteração de um formato simbólico é que
ele, perdendo sua carga informativa, passa a ser compreendido como
sendo o próprio objeto. Ao mesmo tempo, esse fenômeno cria uma violência
perceptiva, que não permite o descolamento entre o signo e objeto,
submetendo toda percepção a um só esquema.
O
código no entanto, está sempre em expansão e trocando energia. As
mídias operam em circuitos formados em ambientes, onde a entropia
surge como elemento mais constante e os códigos como traços culturais.
A idéia de ambiente aqui é tomada a partir de seu significado do
grego, perivello, que significa “golpear desde todos os lados
ao mesmo tempo”. Tem a ver não com uma relação com o mundo natural,
mas com simultaneidade, que inclui processamento constante. Recepção
não é decodificação, mas recodificação segundo os parâmetros de
quem recebe.
A
idéia de bios midiático pode ser recuperada por meio da noção de
BIOS como Basic Input Output System, não como uma vida paralela
que imita, engana, uma atualização do mito das cavernas platônico,
que propõe a dualidade entre o real e o imaginário. É nas possibilidades
de conexões que estão elementos importantes a serem explorados.
Deve-se
sair da dicotomia real vs imaginário para outra onde se prevê a
comunicação como mediação.O meio está no ambiente e este ambiente
possui um outro espaço, distinto do tradicional. A compreensão não
se faz por dicotomias, mas por elementos em constante tensão, tensão
essa que não tende ao equilíbrio que o esquema comunicacional tradicional
(emissor, mensagem, receptor) prevê. Há a necessidade de um pensamento
complexo, diagramático, rizomático, para além da lógica platônica
como método de superação das contradições.
As
imagens midiáticas são de difícil análise porque como coloca Flusser
(2002:13), “não precisam ser decifradas” Mas existem vários exemplos
de artistas e teóricos que buscaram quebrar esta noção de tela como
janela do mundo e mostrar que trata-se, na verdade de uma outra
porta, mais para o mundo de Alice no País das Maravilhas do que
para o mundo “real”. Se a fotografia colocou em xeque a pintura
tradicional cuja perfeição estava na superação do real por meio
de uma representação realista, Eisenstein nos chamou a um cinema
não-naturalista por meio da montagem, o que as mídias digitais possibilitam
é a quebra dos formatos por meio da convergência dos meios; todos
em sua especificidade tornam-se signos informacionais e mutáveis..
Não
se trata aqui de avaliar as imagens referenciais ou não-referenciais
por meio de um juízo de valor onde o referencial é “mal” porque
engana e o não-referencial é bom, porque é a verdade libertadora.
Todos os signos culturais podem ser utilizados de modo controlador,
já que é característico dos processos cognitivos que a reiteração
gere um desgaste da mensagem, seja ela das mais variadas naturezas.
A questão que se coloca é discutir a forma unilateral de construção
de interfaces que oferecem apenas um caminho de percepção do espaço
digital. Suas referências ao mundo natural também são aprendidas,
afinal, mesmo o programa mais básico de computador necessita de
um operador com certa alfabetização digital para manipulá-lo. O
que se questiona aqui é a criação de uma entrada única (ou pelo
menos muito poucas) em uma mídia de concepção múltipla. Interfaces
gráficas que se sobrepõem aos códigos em um primeiro momento servem
para ajudar na compreensão dos múltiplos códigos do computador,
mas podem vir a se tornar uma barreira para o acesso aos próprios
códigos, que podem ser vistos do modo separado e não como um só
elemento. Como coloca Flusser (2002: 9), “imagens são mediações
entre homem e mundo. O homem “existe”, isto é, o mundo não lhe é
acessível imediatamente. Imagens têm o propósito de representar
o mundo. Mas, ao faze-lo, interpõem-se entre mundo e homem”. A interface
passa a ser uma ordenação “real” do espaço digital.
Imagem-informação
As
webcams são exploradas como “pontos de conexão” entre várias partes
do mundo onde pode-se presenciar o que se passa em lugares absolutamente
distantes. Estas imagens, no entanto, geram o efeito contrário, de
não-referencialidade, de constante não-lugar, onde todos os espaços
se equivalem em termos de resultado: carros, pessoas que passam, uma
paisagem ao acaso. É claro que existem outros exemplos de utilização
destas câmeras, mas os que foram citados caracterizam claramente a
fragilidade das webcams como meras câmeras de vídeo sem operador;
nestes usos nota-se claramente a urgência da retomada de um usuário
que traga informações que se intercambiem com o que está dentro.
A idéia de relação com o externo como um olho sem cérebro esvazia
o suporte como meio e deixa de explorar suas potencialidades.
Logcam,
projeto desenvolvido pelo artista Rafael Marchetti traz a discussão
para uma outra via: esta imagem não é imagem, é um sistema realizado
por códigos cujo input e output vão recriando os resultados obtidos.
Retoma-se
a abordagem da imagem digital como interface gráfica. Uma imagem-sistema
onde o output e input de informações criam um todo dinâmico. De
acordo com Manovich (2001:183), as imagens digitais podem ser imagem-interface
ou imagem-instrumento, dependendo do uso que é feito delas. O ponto
em comum é que estas imagens não são simplesmente oferecidas para
a fruição, pois podem ser alteradas pelo observador.
Busca-se
exatamente a via contrária das referências visuais realísticas para
que se possa explorar o que não está imediatamente visível ou pelo
menos para se construir um todo que esteja voltado às experimentações
sobre as especificidades do próprio suporte e ruas relações com
o ambiente midiático que o circunda. É a partir de uma visão relacional
e longe das metáforas que podemos propor novas discussões sobre
o ambiente tecnológico e seus periféricos.
As
imagens criadas são sintéticas, não obedecem a um referente externo.
Na web há um hic nunc contínuo, ainda que móvel, não localizado.
Como define Contreras (1998:106):
“estas
imagens nascidas do computador se convertem em signos que não
significam nenhum objeto externo e se significam como um projeto
em si. No universo da simulação afirmamos a garantia de uma experimentação
fora de qualquer risco da mesma atuação no mundo real. É um jogo
com algoritmos e procedimentos matemáticos. O tempo e o espaço
ficam sem coordenadas, em uma ação que pode voltar-se para trás
para frente sem alterar o resultado final. As ações podem reconstruir-se
ou são alteradas e modificadas.”
Esta
temporalidade contínua não refere-se a uma idéia evolucionista das
mídias, que toma como base apenas as seqüências de sofisticações
tecnológicas, mas uma temporalidade distinta, que pode estar mais
distanciada das marcas de lugar. É um espaço fluido que vai sendo
descoberto por meio de experimentações que devem ir além das relações
real vs. imaginário.
A
interface é compreendida como propõe Contreras e Manovich, a partir
de códigos culturais que carregam mensagens e por isso mesmo, significados
que podem ser alterados e recombinados.
Interação
também é um termo que busca ser discutido em Logcam, mas interação
como processo cognitivo entre um usuário que preenche espaços que
são deixados pelas possibilidades abertas pelos códigos (entendidos
como memes culturais). Se por um lado a imagem voltada ao
referente cria uma codificação rígida, as imagens continuamente
criadas pela webcam em Logcam buscam deixar em evidência estas brechas.
Há
a fragmentação da imagem, sua apresentação bidimensional, a montagem
por meio de uma seqüência randômica que busca operar por meio do
contraste. A imagem digital é feita de pixels, pontos luminosos
que por sua vez são constituídos em sua base por um código binário
que circula por meio de energia elétrica.
Se
por um lado as metáforas e referências diretas ao mundo real podem
ser novas formas de controle, as matrizes matemáticas das quais
as imagens digitais são constituídas podem ser infinitamente reconstruídas.
Enquanto na pintura e nas fotografias o ponto de vista é único,
nos sistemas digitais a determinação do ponto de vista sob o qual
será dada a imagem se constrói de modos múltiplos e provisórios.
Logcam
busca modos de racionalização, de concretização visual de uma idéia,
mas esta racionalidade não pode ser confundida com fechamento ou
rigidez, porque se assim fosse eles perderiam sua força comunicativa.
Um projeto que busca por em discussão as características e usos
dos meios digitais implica em ser modificado continuamente, pois
relações de vetores de sentido e densidade distintas não operam
em equilíbrio absoluto.
Logcam:
intercambiando linguagens Em
Logcam os suportes midiáticos serão utilizados de forma não
isolada, intercambiando funções. O projeto faz uso de múltiplas
webcams, tanto como captadores de imagens do espaço físico
como sensores de movimento, buscando explorar texturas e combinações
de cores.
O
que se busca é expandir os modos de utilização das diversas mídias,
como por exemplo: espaço físico como interface de interação, webcam
como um sensor que capta imagens não referenciais e resultados gráficos
que não operam na relação “autor/espectador”, e sim como uma leitura
espacial dinâmica. A maior ou menor complexificação do trabalho
depende igualmente do uso que o receptor da mensagem faz dela.
Com
as experimentações de Logcam é possível criar um todo que busca
por um lado colocar em evidência uma possibilidade de processamento
de criação de uma seqüência gráfica em meios digitais, por outro
incluir o indivíduo como parte da obra sem necessariamente fazer
uso do esquema da câmera que capta o externo e simplesmente o reproduz
ou de outra forma as interações a partir do mouse interface gráfica
que é amplamente utilizada na web e que pode gerar certos automatismos
(daí a decepção por parte dos usuários quando uma ação do mouse
não gera uma resposta imediata na interface).
Por
outro lado o acaso foi incluído por meio da seqüencialidade randômica,em
uma busca de se incluir a causalidade na estrutura ordenada da obra.
Sabe-se que há regras em organizações caóticas, mas regras que Peirce
chamou de “evolutivas”, não definidas a priori, como uma variedade
racionalizada.
Evidentemente
a proposta de Logcam não pretende dar respostas a todas as questões
levantadas, mas ser uma experimentação diagramática de algumas das
preposições apresentadas. Assumindo a idéia de que a linguagem visual
é de rapidíssima apreensão (daí seu poder persuasivo), tentamos
subverter o discurso fechado dos ícones em direção a uma representação
aberta, que se reconstrói constantemente. Finalmente concordamos
mais uma vez com McLuhan (1998:355): Por que a linhas fragmentadas
do monitor devem enfatizar os contornos esculturais dos objetos?”
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